UM E_MAIL PARA BRAULIO

Numa Ciro

Pelos seus 70 anos
E os 40 do Hipopótamo


A espinha dorsal do meu corpo de memórias cedeu aos impulsos das vértebras cabralinas provocando a abertura das articulações poético sonoras que fizeram expandir as fronteiras transferenciais ciberhumanas. Um farol acendeu lembranças que me arrastaram pelos olhos e orelhas aos pés do instante em que reconheci meu ser para a Arte. Voltei, Recife! E me vi sentada no auditório onde aconteciam as conferências políticas e espetáculos artísticos promovidos pelo Diretório Central do Estudantes.

Escrevi DCE? Sim. Primeiros sinais da abertura que rachava a ditadura. Eu era estudante de Psicologia na Faculdade de Filosofia do Recife e fui eleita por voto direto para presidente de seu Diretório Acadêmico. Os diretórios estavam sendo reanimados, pois tinham sido fechados logo no início da ditadura. Apesar dos votos permitidos apenas para dois componentes de cada diretório acadêmico, a chapa da esquerda ganhou a eleição para presidir o DCE – Recife. Aí recomeçaram os movimentos estudantis pelo direito de todos à educação, pelas condições de ensino, pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, primeiro movimento nacional unificado contra a ditadura.

Naquela tarde, naquele auditório, segurei nos peitos, com as fibras do coração, o impacto indescritível de ver e ouvir, naquele palco, você, Bráulio Tavares. Bardo? Anjo Futurista? Menestrel das Galáxias? Rapsodo das Musas indecifráveis? Quem se apresentava assim?

Meu nome é Trupizupi
Sou o Galo de Campina
Meu nome é Trupizupi
O Raio da Silibrina

No ritmo do sotaque do cariri, ligeiro como um raio e desenrolado como o bote da caninana… com o timbre luminoso dos aboios e a altivez das seriemas na beira do açude… com a perigosa maciez da onça pintada e aquele olhar de uma criança encantada… Quem dizia esses versos?

Comecei aprendendo com Drummond.
Traduzi os poemas de Ezra Pound,
As canções de Bob Dylan, o underground,
A escrita automática de Breton.
Maiakóvski foi quem me deu o tom;
João Cabral me ensinou o ponteado;
Com Rimbaud aprendi ser afinado
Pra cantar o oceano com Neruda;
Treme o sol, treme a terra, o vento muda
Quando eu canto martelo agalopado.

Tantos anos depois, parece que foi ontem. Parece que vai acontecer amanhã. Está acontecendo agora. Você, Bráulio, nos faz pensar ao longo da transversalidade dos tempos: narrativos, poéticos, humanos, políticos, filosóficos. Então ouso dizer a todo mundo: Pense! “O futuro substitui o passado como um matagal ocupa um vilarejo” about:blank#blocked. Sente! na Praça do Meio do Mundo e escute a Balada do Andarilho Ramon; aprenda a fazer Anotações para um Adeus e responder com um Soberano Desprezo a uma desilusão amorosa; difícil não entrar na luta antirracista depois de conhecer O Caso dos Dez Negrinhos; lave a sua alma nordestina com uma vingança ficcional e Imagine o Brasil ser dividido e o Nordeste ficar independente; misture suas emoções aos ingredientes do Caldeirão dos Mitos para depois descobrir no Poema da buceta cabeluda o púbis do universo.

Sai do meio que lá vem o filósofo. Viemos, de ônibus, eu, professora do Departamento de Educação e uma turma de alunos da UFPB – Campus II, Campina Grande – era assim naquela época – assistir a 32ª Reunião Anual da SBPC de 6 a 12 de julho de 1980, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. O tema foi Ciência e Educação para uma Sociedade Democrática. Ficamos hospedados na Casa do Estudante Universitário da UFRJ – Na Av. Rui Barbosa, de frente para a Baía da Guanabara, hoje Colégio de Altos Estudos. Te Lembras de quem estava neste ônibus e ficou hospedado nesta Casa? Tu, Bráulio Tavares. Imagine se faltou cantoria e alegria nessa viagem… E os shows que aconteceram naquela Casa? A nota triste foi marcada pela notícia da morte de Vinícius de Moraes no dia 9 de Julho. Nunca esqueci deste momento, lágrimas a escorrer enquanto olhava a Baía e o Pão de Açúcar.

Em 1981, com a direção de Hermano José, diretor do Teatro Municipal de Campina Grande, fiz minha estreia como atriz, contracenando com Ranulfo Cardoso Jr. A peça? Quinze Anos Depois, de Bráulio Tavares. Ficamos em cartaz durante 3 anos, pelos palcos do Brasil, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Ganhamos prêmios e consideração.

Mas só nos anos 90, já morando aqui, no Rio de Janeiro, desmanchei a pose de estátua diante do Gênio e comecei a escrever. Primeiro poema: adivinhe! Um Martelo Agalopado, Meu Nome é Numa Ciro, em resposta ao seu martelo Meu nome é Trupizupi. No começo eu vim assim:

Pra cantar desafio estou contigo
Oh poeta que sigo e admiro
Estatura não tenho mais prefiro
Ser o anjo que afasta o inimigo
A morada do amor é meu abrigo
O desejo da rima é combinar
O sentido do mote está no ar
Quem pegar na palavra diz o seu
Quem pensar que eu não canto escute o meu
É com ele que vou me apresentar

Em 2018, foi lançado o LENDÁRIO LIVRO, feito de nossos poemas, 5 autores nordestinos: Aderaldo Luciano, Bráulio Tavares, o inesquecível recém finado Raimundo Nonato, Toinho de Castro, Otto Ferreira e – A Convidada – esta nordestinada que vos escreve. Aí, a minha homenagem agalopada deixa a sua marca de admiração.

Só se fala atualmente em internete,
Endereço eletrônico  navegar.
Comunica quem aprende a sitiar:
Uma bomba que não mata mas impede
A conversa cara a cara sem confete.
Pois eu acho esse caso muito sério.
Manuscrito já perdeu o seu império,
Sobre isso escrevi sem nostalgia
E pra não ter o atraso de um dia,
Eu mandei-o para Bráulio por e-méio.

Aí me apresentei para você saber quem eu era ou queria ser. Eu pedia, não para desafiar, mas para ser seu par no repente… decorado… e o refrão apresentador:

Meu nome é Numa Ciro
Sou a relva da Campina
Meu nome é Numa Ciro
A providência divina

Em outubro 2020, com 70, (gosto de dizer: nascemos em Campina Grande, no mesmo ano) lançarei meu primeiro disco produzido pela percussionista Lan Lanh, que você deu a honra de sua presença na primeira audição do albúm, naquela noite inesquecível na Companhia de Mystérios e Novidades, na Gamboa. A única música que não tem letra minha, é a sua, Bráulio: Hipótese do Hipopótamo Tartamudo – Uma balada comportamental, com arranjo e piano de Cadu Pereira e fagote e contra fagote de Cosme Silveira. Esta música está fazendo quarenta anos que foi composta e eu vivo dentro dela com meu canto há pelo menos uns 35 anos initerruptamente. Considero que é uma das composições mais geniais de todo o cancioneiro do planeta em todas as épocas.

A escritora americana Toni Morinson, na ocasião em que recebeu o prêmio Nobel de Literatura, disse, em seu discurso, que uma língua para ser viva tem que ser reinventada constantemente. Não existe quem o faça melhor do que os escritores, poetas e cantadores. Considero você um exímio tradutor, não só das centenas de obras de língua inglesa, mas de nossa própria língua nordestinada. Há um universo significante ali que a gente fala e nem percebe como fala e o que diz. É só o tempo de ouvir a sua voz, Bráulio: a cantar, pensar alto, escrever… Quem a escuta, não escapa: quem não era, vira, na hora, um falante apaixonado por essa língua.

Você escreveu:

Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa
que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo
com pernas que ela terá de crescer de si própria;
e que seja ela uma máquina viva, uma máquina
capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir. Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.

capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir. Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.

Você inventou, Bráulio. A sua obra e você.


Numa Ciro, paraibana de Campina Grande. Poeta/letrista, atriz, performer, professora e psicanalista. NUma tem raíz na Paraíba mas também altos galhos e folhas que se espalham por aí. Cosmopolita e vibrante, sua arte faz pontes inestimáveis entre muitos e distintos mundos.

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