REVISTA KURUMA’TÁ E OS 70 ANOS DE BRAULIO TAVARES

Revista Kuruma’tá


Braulio Tavares, paraibano de Campina Grande, é uma máquina de ter ideias e fazer coisas. Com cabeça elétrica e coração acústico tá sempre escrevendo, traduzindo, compondo, metido no teatro e no cinema, palestrando e sempre lançando luz do seu conhecimento enciclopédico e dinâmico nos encontros e conversas.

Classificar Braulio e seu trabalho é desnecessário. Mas talvez possamos dizer que é um trabalho humanista, de olho nas pessoas e sua diversidade, seus anseios, temores, esperanças e lidas diárias, diante de um mundo assombroso, multifacetado e desafiante.

Esse mês de setembro do estranho ano de 2020 marca seus 70 anos de vida. Uma vida de contribuições, colaborações e parcerias generosas com tantos artistas. A revista Kuruma’tá, casa amiga do Braulio, não poderia deixar passar essa data sem se mexer na direção desse grande amigo e artista. Por isso estamos, neste saite, utilizando a grafia que o próprio Braulio prefere, reunindo, reunindo pessoas pra conversar sobre o artista e sua obra, e sua presença potente nas nossas vidas e na vida cultural do país. Salve, Braulio!


Aproveite e assista o bate-papo sobre a vida e obra de Braulio Tavares que a Revista Kuruma’tá promoveu em sua página no Facebook, com participação de Aderaldo Luciano, Numa Ciro e Toinho Castro, em 1 de outubro de 2019, quando aconteceu o lançamento deste saite.

Para participar deste saite com a gente, escreva para revista@kurumata.com.br

TRÊS DA MADRUGADA, UM POEMA INÉDITO DE BRAULIO TAVARES

Outro dia teve esse bate-papo ao vivo com Aderaldo Luciano, Numa Ciro e Toinho Castro, no Facebook da Kuruma’tá, sobre a obra de Braulio Tavares e sua presença no cenário da cultura brasileira, isso por ocasião dos seus 70 anos e também por conta da campanha de financiamento coletivo, para edição dos seus livros A espinha dorsal da memória e Mundo fantasmo, pela Editora @bandeirola . Ele não participou da conversa mas acompanhou tudo e lá pelas tantas mandou a seguinte pergunta: Posso enviar um poema inédito para o saite?!

Ele se referia a este saite! E a resposta a tal proposta, naturalmente, foi Claro! Sempre vamos querer um poema inédito do Braulio. E aqui está…

Toinho Castro, editor

Três da madrugada

Já são as três da madrugada.
Estou bebendo na cozinha.
O dia pertence a todos;
a noite é minha.

Entre um copo cheio e um vazio
entre uma carne quente
e um vinho frio
meu olhar corre as paredes
como se acompanhasse
uma lagartixa
que ninguém mais vê.

E chega à lata de lixo
onde, por baixo da tampa,
emerge a cauda de um bicho.
Uma cauda que se mexe
e diz: “Não morri ainda.”

Um rato? Um gato? Um cachorro?
Um bicho que diz: “Não morro,
não me entrego, não desisto,
sou teimoso como um Cristo
que volta, ao terceiro dia.”

Que carrasco deixaria
um crânio decapitado
dizer:
“Não vou ser jogado
dentro da vala comum,
pois eu não sou qualquer um;
sou Eu, sou um indivíduo,
não sou o mero resíduo
do que foi vivo e morreu;
sou isto, sou sempre um Eu
que não se repetirá,
e glória maior não há
do que o mero existir,
o perceber, o sentir,
o responder, o falar,
o ser, o haver, o estar.

“Ser parte do turbilhão
onde a Carne e a Razão
desenham seu pas-de-deux;
onde o diabo e o bom deus
soldam a sua aliança;
onde a guerra aspira à dança
e a dança dilui a guerra;
e o corpo é mais um planeta
sacrificado à Ideia;
onde a Terra é uma carne
queimada por Prometeu?
Quem lhes pergunta sou eu,
cabeça decapitada;
um corpo que não é nada
e retorna à terra fria…”

Que carrasco deixaria
uma cabeça falante
dizer tais coisas diante
da multidão boquiaberta?

Não, não! A coisa mais certa
é queimá-la em mil fogueiras;
cabeças são feiticeiras
botando o mundo em perigo:
porta-vozes do inimigo,
cassandras da perdição,
arautos do armagedon…
Não! Que ninguém ouça o som
dinamitando os contentes.

Pois entre os seres viventes
somente uma lei vigora:
a de ainda estar vivo
para ver romper a aurora.
Viver; viver o momento
ter aceso o pensamento
ter o corpo em movimento
mesmo que o mundo se acabe.
Viver a vida de quem
“tira de onde não tem
pra botar onde não cabe”.

E assim passa meu olhar
e chega à lata de lixo
onde momentos atrás
eu vi o rabo de um bicho…
Era uma tira de plástico,
escuro, comprido, elástico,
que um vento qualquer mexeu.
Não era bicho nem nada.
Era a cabeça cansada
de pensar tanto; era Eu.

UM E_MAIL PARA BRAULIO

Numa Ciro

Pelos seus 70 anos
E os 40 do Hipopótamo


A espinha dorsal do meu corpo de memórias cedeu aos impulsos das vértebras cabralinas provocando a abertura das articulações poético sonoras que fizeram expandir as fronteiras transferenciais ciberhumanas. Um farol acendeu lembranças que me arrastaram pelos olhos e orelhas aos pés do instante em que reconheci meu ser para a Arte. Voltei, Recife! E me vi sentada no auditório onde aconteciam as conferências políticas e espetáculos artísticos promovidos pelo Diretório Central do Estudantes.

Escrevi DCE? Sim. Primeiros sinais da abertura que rachava a ditadura. Eu era estudante de Psicologia na Faculdade de Filosofia do Recife e fui eleita por voto direto para presidente de seu Diretório Acadêmico. Os diretórios estavam sendo reanimados, pois tinham sido fechados logo no início da ditadura. Apesar dos votos permitidos apenas para dois componentes de cada diretório acadêmico, a chapa da esquerda ganhou a eleição para presidir o DCE – Recife. Aí recomeçaram os movimentos estudantis pelo direito de todos à educação, pelas condições de ensino, pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, primeiro movimento nacional unificado contra a ditadura.

Naquela tarde, naquele auditório, segurei nos peitos, com as fibras do coração, o impacto indescritível de ver e ouvir, naquele palco, você, Bráulio Tavares. Bardo? Anjo Futurista? Menestrel das Galáxias? Rapsodo das Musas indecifráveis? Quem se apresentava assim?

Meu nome é Trupizupi
Sou o Galo de Campina
Meu nome é Trupizupi
O Raio da Silibrina

No ritmo do sotaque do cariri, ligeiro como um raio e desenrolado como o bote da caninana… com o timbre luminoso dos aboios e a altivez das seriemas na beira do açude… com a perigosa maciez da onça pintada e aquele olhar de uma criança encantada… Quem dizia esses versos?

Comecei aprendendo com Drummond.
Traduzi os poemas de Ezra Pound,
As canções de Bob Dylan, o underground,
A escrita automática de Breton.
Maiakóvski foi quem me deu o tom;
João Cabral me ensinou o ponteado;
Com Rimbaud aprendi ser afinado
Pra cantar o oceano com Neruda;
Treme o sol, treme a terra, o vento muda
Quando eu canto martelo agalopado.

Tantos anos depois, parece que foi ontem. Parece que vai acontecer amanhã. Está acontecendo agora. Você, Bráulio, nos faz pensar ao longo da transversalidade dos tempos: narrativos, poéticos, humanos, políticos, filosóficos. Então ouso dizer a todo mundo: Pense! “O futuro substitui o passado como um matagal ocupa um vilarejo” about:blank#blocked. Sente! na Praça do Meio do Mundo e escute a Balada do Andarilho Ramon; aprenda a fazer Anotações para um Adeus e responder com um Soberano Desprezo a uma desilusão amorosa; difícil não entrar na luta antirracista depois de conhecer O Caso dos Dez Negrinhos; lave a sua alma nordestina com uma vingança ficcional e Imagine o Brasil ser dividido e o Nordeste ficar independente; misture suas emoções aos ingredientes do Caldeirão dos Mitos para depois descobrir no Poema da buceta cabeluda o púbis do universo.

Sai do meio que lá vem o filósofo. Viemos, de ônibus, eu, professora do Departamento de Educação e uma turma de alunos da UFPB – Campus II, Campina Grande – era assim naquela época – assistir a 32ª Reunião Anual da SBPC de 6 a 12 de julho de 1980, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. O tema foi Ciência e Educação para uma Sociedade Democrática. Ficamos hospedados na Casa do Estudante Universitário da UFRJ – Na Av. Rui Barbosa, de frente para a Baía da Guanabara, hoje Colégio de Altos Estudos. Te Lembras de quem estava neste ônibus e ficou hospedado nesta Casa? Tu, Bráulio Tavares. Imagine se faltou cantoria e alegria nessa viagem… E os shows que aconteceram naquela Casa? A nota triste foi marcada pela notícia da morte de Vinícius de Moraes no dia 9 de Julho. Nunca esqueci deste momento, lágrimas a escorrer enquanto olhava a Baía e o Pão de Açúcar.

Em 1981, com a direção de Hermano José, diretor do Teatro Municipal de Campina Grande, fiz minha estreia como atriz, contracenando com Ranulfo Cardoso Jr. A peça? Quinze Anos Depois, de Bráulio Tavares. Ficamos em cartaz durante 3 anos, pelos palcos do Brasil, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Ganhamos prêmios e consideração.

Mas só nos anos 90, já morando aqui, no Rio de Janeiro, desmanchei a pose de estátua diante do Gênio e comecei a escrever. Primeiro poema: adivinhe! Um Martelo Agalopado, Meu Nome é Numa Ciro, em resposta ao seu martelo Meu nome é Trupizupi. No começo eu vim assim:

Pra cantar desafio estou contigo
Oh poeta que sigo e admiro
Estatura não tenho mais prefiro
Ser o anjo que afasta o inimigo
A morada do amor é meu abrigo
O desejo da rima é combinar
O sentido do mote está no ar
Quem pegar na palavra diz o seu
Quem pensar que eu não canto escute o meu
É com ele que vou me apresentar

Em 2018, foi lançado o LENDÁRIO LIVRO, feito de nossos poemas, 5 autores nordestinos: Aderaldo Luciano, Bráulio Tavares, o inesquecível recém finado Raimundo Nonato, Toinho de Castro, Otto Ferreira e – A Convidada – esta nordestinada que vos escreve. Aí, a minha homenagem agalopada deixa a sua marca de admiração.

Só se fala atualmente em internete,
Endereço eletrônico  navegar.
Comunica quem aprende a sitiar:
Uma bomba que não mata mas impede
A conversa cara a cara sem confete.
Pois eu acho esse caso muito sério.
Manuscrito já perdeu o seu império,
Sobre isso escrevi sem nostalgia
E pra não ter o atraso de um dia,
Eu mandei-o para Bráulio por e-méio.

Aí me apresentei para você saber quem eu era ou queria ser. Eu pedia, não para desafiar, mas para ser seu par no repente… decorado… e o refrão apresentador:

Meu nome é Numa Ciro
Sou a relva da Campina
Meu nome é Numa Ciro
A providência divina

Em outubro 2020, com 70, (gosto de dizer: nascemos em Campina Grande, no mesmo ano) lançarei meu primeiro disco produzido pela percussionista Lan Lanh, que você deu a honra de sua presença na primeira audição do albúm, naquela noite inesquecível na Companhia de Mystérios e Novidades, na Gamboa. A única música que não tem letra minha, é a sua, Bráulio: Hipótese do Hipopótamo Tartamudo – Uma balada comportamental, com arranjo e piano de Cadu Pereira e fagote e contra fagote de Cosme Silveira. Esta música está fazendo quarenta anos que foi composta e eu vivo dentro dela com meu canto há pelo menos uns 35 anos initerruptamente. Considero que é uma das composições mais geniais de todo o cancioneiro do planeta em todas as épocas.

A escritora americana Toni Morinson, na ocasião em que recebeu o prêmio Nobel de Literatura, disse, em seu discurso, que uma língua para ser viva tem que ser reinventada constantemente. Não existe quem o faça melhor do que os escritores, poetas e cantadores. Considero você um exímio tradutor, não só das centenas de obras de língua inglesa, mas de nossa própria língua nordestinada. Há um universo significante ali que a gente fala e nem percebe como fala e o que diz. É só o tempo de ouvir a sua voz, Bráulio: a cantar, pensar alto, escrever… Quem a escuta, não escapa: quem não era, vira, na hora, um falante apaixonado por essa língua.

Você escreveu:

Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa
que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo
com pernas que ela terá de crescer de si própria;
e que seja ela uma máquina viva, uma máquina
capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir. Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.

capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir. Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.

Você inventou, Bráulio. A sua obra e você.


Numa Ciro, paraibana de Campina Grande. Poeta/letrista, atriz, performer, professora e psicanalista. NUma tem raíz na Paraíba mas também altos galhos e folhas que se espalham por aí. Cosmopolita e vibrante, sua arte faz pontes inestimáveis entre muitos e distintos mundos.

BRAULIO TAVARES

Gerson Lodi-Ribeiro

Quando penso no Bráulio, amigo velho de mais de trinta anos de andanças e eventos da ficção científica brasileira, a primeira coisa que me vem à cabeça é uma expressão em latim, primus inter pares. O primeiro entre seus iguais. Só que Bráulio Tavares é bem mais do que isto. Porque, em termos de literatura fantástica, não só brasileira como lusófona, ele é indubitavelmente o melhor entre iguais. Optimus inter pares.

Só que ele também não é só isto. Pois, o que dizer de um ser humano(?) capaz de exercer tantos ofícios — de cabeça, sem consultar o verbete dele na Wikipédia: poeta; cordelista; dramaturgo; jornalista; escritor; roteirista; tradutor (de Wells a Willis, passando por muitas outras “iniciais” de renome, dentro e fora da literatura fantástica); músico; e letrista — com proficiência magistral? Isto para não falar dos ofícios e ocupações de que esqueci. Mais do que mero polímata, Bráulio é um polígrafo. Não um detetor de mentiras, é claro, mas sim a pessoa que é capaz de escrever acerca de diversos assuntos. Escrever, na melhor acepção desse termo.

Li meu primeiro Bráulio Tavares um ano antes de conhecê-lo pessoalmente: O que é Ficção Científica (1986), publicado pela Brasiliense em sua coleção Primeiros Passos. Um livro breve e conciso, como qualquer texto introdutório deveria ser. Abrangente também, como só os melhores textos introdutórios logram ser. Meu primeiro contato imediato com o Bráulio se deu no playground do prédio do amigo comum Cid Miranda, em agosto de 1987, na primeira reunião mensal que compareci do segmento carioca do Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC). O evento ficou marcado em minha mente pelo comentário do Bráulio, com aquele seu jeito perspicaz e jovial, ao se confessar farto de assistir filmes de FC com insetos e aracnídeos gigantescos criados pelos efeitos nocivos das explosões nucleares e que adoraria assistir um filme desse tipo que mostrasse elefantes reduzidos ao tamanho de camundongos.

Bráulio escreveu de tudo um pouco e sempre muito bem. Por isto, não espanta que tenha sido agraciado com várias premiações ao longo de sua carreira literária (e não só). Não citarei todos, até pelo receio de esquecer um ou mais prêmios importantes. Porém, os dois que mais me impressionaram foram o Jabuti 2009 na categoria literatura infantil, com A Invenção do Mundo pelo Deus-Curumim e, sobretudo, o Prêmio Editorial Caminho de Ficção Científica 1989, com a coletânea Espinha Dorsal da Memória. Como os demais amigos do CLFC-Rio daquela época, compareci à saudosa livraria Camões, para “tomar um vinho” (assim constava no convite) e comemorar a premiação e o lançamento da coletânea no Brasil.

Participei de diversas mesas-redondas com o Bráulio. Em colégios, convenções de literatura fantástica (normalmente em Sampa) e até uma no campus da FIOCRUZ em 2004. Meu amigo costuma ser o centro das atenções nesses eventos, visto que sua verve prodigiosa não se limita à escrita. Desde que o conheci, tenho a impressão nítida de que Bráulio é capaz de discorrer sobre qualquer assunto, sempre de maneira a encantar a plateia, a ponto de não sentirmos o tempo passar. Muitas também foram as viagens que fizemos à cidade de São Paulo para participar de convenções ou reuniões do CLFC-SP.

Perdi as contas do número de lançamentos em que encontrei o Bráulio. Contudo, os mais marcantes foram o da antologia Como Era Gostosa a Minha Alienígena! no SESC-Tijuca em março de 2003, quando ele me confidenciou que havia declinado do convite para participar com um conto, por não ter acreditado que o projeto decolaria, e o lançamento carioca de uma outra antologia, cinco anos antes, a Outras Copas, Outros Mundos, em plena Copa do Mundo de 1998, na livraria Beringela, em que ambos comparecemos como autores. Aliás, isto me lembra da última vez que encontrei o Bráulio. Foi justamente noutro lançamento na Beringela: o romance Back in the U.S.S.R. do nosso grande amigo comum, Fábio Fernandes, em fins de 2019, dois meses antes da chegada da Covid-19.


Gerson Lodi-Ribeiro é escritor carioca de ficção científica e história alternativa.

FRAGMENTOS DE PRIMEIRAS MEMÓRIAS

Bruno Gaudêncio


1
Na faculdade de comunicação social da Universidade Estadual da Paraíba, em Campina Grande, eu costumava roubar as páginas da Coluna dele presentes no Jornal da Paraíba. Nas nossas aulas de jornalismo comentava-se tanto o nome dele que o colega Rostand Melo sugeriu que nossa turma se chamasse Bráulio Tavares. Concordamos. Quando o curso foi transferido do bairro do São José para a Central de Aulas, em Bodocongó, o prédio ficou praticamente abandonado. Eu passava de ônibus em frente ao edifício e vi ao longe a nossa placa. Um dia não encontrei mais as placas. Soube que arrancaram das paredes ficaram imprestáveis. Foram para o lixo. Ficou na memória.

2
Era um sábado no miniteatro Paulo Pontes. 15 horas. O professor Luís Custódio convidou toda a nossa turma de jornalismo para uma palestra de Bráulio Tavares. O tema era música. Além dele outro campinense ilustre palestraria: José Teles, crítico de música no Recife. Chegamos cedo. Ao todo éramos uns sete ou oito estudantes. Custódio prometeu nos apresentar ao colunista do Jornal da Paraíba, ex-cineclubista, escritor do sucesso. E assim foi feito. Lembro que fiquei ansioso. Bráulio foi um dos primeiros escritores que conheci pessoalmente. Na época eu era um menino de 19 anos. Já sonhava ser escritor. A única coisa que tinha dele era a coleção de artigos de jornais, recortados e guardados dentro de um caderno. Seria vergonhoso pedir um autógrafo em uma coleção de recortes de jornal?

3
Em 2007 tive uma ideia de fazer uma enquete literária com alguns escritores brasileiros contemporâneos que acompanhava nas páginas do suplemento Correio das Artes e no site do Cronópios. Lembrei que nos artigos do Jornal da Paraíba havia o e-mail de Bráulio Tavares. Mandei as perguntas da enquete para ele. Ele respondeu rápido que participaria, mas fez um acordo comigo. Responderia as perguntas através de sua coluna do Jornal da Paraíba. Cerca de uma semana depois estava lá às respostas uma por uma. Com a mesma maestria de sempre.

4
Ainda na universidade o primeiro tema que estudei em minha vida acadêmica foi o movimento cineclubista campinense, do qual o próprio Bráulio Tavares foi um dos mais representativos participantes nos anos 1960. O professor Luís Custódio também era um deles. Assim como os irmãos e Romero e Rômulo Azevedo, este último foi meu professor de cinema na universidade depois. Umbelino Brazil era outro nome entre os cineclubistas. Ambos participaram do cineclube Campina Grande no final da década de 1960. Eram todos meninos, com seus quinze e dezesseis anos, em média. Acabei fazendo uma entrevista por e-mail com Bráulio. Oito perguntinhas, que ele respondeu com muita paciência. Era o início de tudo. Foi nesta época também que comecei a participar dos cineclubes que renasciam na minha cidade, o Machado Bitencourt na UEPB, o Mário Peixoto, na UFCG.

5
Bráulio Tavares foi convidado para um evento no antigo prédio do Centro de Educação, na Universidade Estadual da Paraíba. Na época, além de estudante de jornalismo, eu fazia o curso de história, na mesma instituição. Sentei no final do auditório carregando um único bem: um exemplar do livro duplo A Espinha dorsal da Memória/ Mundo Fantasma. Edição da Rocco. Era uma manhã ensolarada. Concluído a palestra dezenas de pessoas fizeram uma fila para conversar com Bráulio. Já no final me apresentei e pedi um autófago no meu surrado livrinho comprado em um sebo em João Pessoa. Quando abriu a primeira página ele sorriu quando viu o carimbo da Livraira Beringela. Na dedicatória escreveu: “Para Bruno Gaudêncio, leitor fiel e participante, um abraço de Bráulio/2008”. Depois deste todos os livros que comprava dele pedia dedicatórias. Dia desse contei onze livros dedicados.

6
Anos depois ele seria o nosso convidado para os Encontros de Literatura Contemporânea, durante o Encontro da Nova consciência, falando sobre ficção científica e lotando os auditórios que passamos. Mais um tempo depois prefaciador o meu livro “Da Academia ao Bar: círculos intelectuais e cultura impressa em Campina Grande – 1913-1953”, publicado em 2019. Antes produziu um conto para a coletânea de organizei, chamada Torturas de Amor: contos de autores nordestinos baseados em clássicos do brega.

7
Hoje, 2020, comemoram-se os seus setentas anos de vida. Agradeço a sua amizade e sua existência. Esta crônica é apenas um fragmento das muitas memórias que tenho com ele. Bráulio Tavares: espinha dorsal de nossa cultura.


Bruno Gaudêncio é escritor e historiador paraibano.

SEIS PASSEIOS PELO BOSQUE DA FRUIÇÃO, PARA BRAULIO TAVARES

Aderaldo Luciano

0.

Outro dia, Braulio Tavares falava de sua tradução para a Alfaguara do clássico A Ilha do Dr. Moreau. Braulio foi, para nós da mesma geração paraibana, um norte e o exemplo. Todos nós o tínhamos, e de certa forma continuamos a tê-lo, como caminho a ser seguido. Foi nosso guia. Com ele conhecemos o andarilho Ramon, saímos da frente para dar passagem ao filósofo, fomos hipopótamos, voamos para o futuro e desembarcamos na casa de Trupizupe. Pois bem, com o romance de H. G. Wells aqui na mão compartilho o parágrafo da apresentação no qual Braulio o aproxima de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, no que tem toda razão.

1.

Se eu fosse Braulio Tavares
Subiria hoje na Lua,
A língua feito uma pua
Furando o céu pelos ares.
Do Reino dos Avatares,
Do Blade Runner (de Dick),
Da Pifeira de Buíque,
Dos rolos de celulóide,
Dos desesperos de Freud
Aos toques de um repinique.

2.

“Na Manichula de Lia,
A melhor da Paraíba
Encontrei Braulio Tavares
Bebendo com Ataliba.

“Era Braulio no repente
E Ataliba na pistola,
Os dois se equilibrando
Sobre um baião de viola.”

3.

Isso aqui é raridade
No Reino da Poesia
Do tempo em que Trupizupe
Em Campina residia
Cantando no Buracão
Bebendo, a cada pifão,
As marcas do seu estilo.
A cabeça dava estalo
Naquele tempo, no Galo,
Quem mandava era Seu Nilo.

4.

Isso é outra novidade
Que trago para vocês
Que adquiri num cruzeiro
Pelo canal de Suez
Alertou-me um beduíno
Que um poeta nordestino,
Cabeludo e meio rústico,
Era primeiro na métrica
Pois tinha a cabeça elétrica,
Mas o coração acústico.

5.

Para fechar, um poema de Seu Nilo Tavares, com autógrafo, fotografado da Coletânea de Autores Campinenses, em comemoração aos 100 anos da cidade, em 1964.


Aderaldo Luciano, nascido em Areia, na Paraíba, é poeta pautado pela estética da poesia do povo. Estudioso da poesia e da música do Brasil profundo, é mestre e doutor em Ciência da Literatura, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vive o projeto Roda de Cordel – leituras e estudos, intervenções de leitura de cordéis em escolas e comunidades rurais brasileiras. 

TRUPIZUPE DO FUTURO

Valeriana Gibson


Braulio Tavares veio do futuro. Ele veio do futuro pra avisar que o futuro é nordestino, que o futuro é Jackson do Pandeiro, o futuro é Marinês. Ele vei pra dizer que lá no futuro tem uma sanfona nos esperando. Um futuro com Naves espaciais, com Marte bem ali, como uma segunda lua, capturado pela gravidade terrestre; pra onde se vai e de onde se vem, todo dia, como quem pega o 422. Soube dessas lorotas e fui ler o que ele andava escrevendo, porque a pessoa vem do futuro pra escrever sobre coisas futuras, com o privilégio de quem lá esteve. E ele escreveu não foi pouco não! Tem poema, tem cordel, tem letra de música, peça de teatro, infanto juvenil… tem música, tem teatro, tem palestra. Pense num assunto! E dizem que ele trouxe isso tudo já escrito, do futuro, e tá só passando a limpo. É o que dizem. Não julgo. Eu faria o mesmo. Veja bem, se ele tá escrevendo tudo isso agora, quando essas coisas todas alcançarem o futuro, ele vai ver tudinho… e aí volta pro passado sabendo que já escreveu, e escreve de novo. É estranho isso, né?! Chama-se paradoxo, eu acho. Esse povo que viaja no tempo, gente que é pai da própria avó, não dá pra confiar. Ainda mais artista!

Mas de que futuro Braulio veio? E está a serviço de quem? Ou do quê? E por que escreve tanto? Esses são mistéiros sobre os quais nos debruçamos sem respota. Ele acha graça. Já leu todos os livros, torc pelo Treze de Campina Grande e pelo Flamengo, já tem uma vida aqui. Será que fugiu, gente, da opressiva sociedade do século 32?! Lá quando ninguém poederá escrever. Daí essa danação, essa vontade de botar as ideias todas no papel. E o pior é que ele leva jeito pra escrita, e verseja bem que só.Tomou gosto pelo século 20. Dizem também que lamentou quando o século acabou e o tão esperado ano de 2001 abriu suas primeiras horas. Dizem que foi pra janela e pensou: Lá se vai o século 20. Adeus, companheiro. Vai saber se foi assim mesmo.

E agora completou 70 anos, esse Trupizupe! Diga-se, 70 anos aqui no presente. Porque lá no futuro viveu outros tantos. Você sabe como é que se viaja no tempo? Não? A pessoa, o viajante, tem que nascer naquele ano para o qual ela quer viajar. É isso… a diferença de uma pessoa que nasce mesmo e um viajante do futuro, é que ele traz as memórias do amanhã. Lembra de tudo, mas guarda segredo e cumpre o plano, que pode ser espionagem, uma fuga, uma desdita, uma pesquisa para um doutorado. Braulio tá aí, escrevendo, produzindo, lendo aqueles livros todos da estante dele, porque em cada ciclo do seu looping temporal ele lê os livro que ainda não leu, e assim se enche de sabedoria, mas sabedoria no sentido João Grilo do termo, sabedoria como esperteza. Mas às vezes, ao poeta, tem também a angústia das errantes andanças temporais, e de ter que guardar em segredo o desatino de viver uma vida inteira em outro fuso. Termino, pois, meu testemunho com um poema que Braulio escreveu e diga-me você, se não é a pura confissão de um viajante do futuro que não pode falar pra ninguém de quando veio.

Sete-estrelo

E eu, que de meu só tenho um verso,
e que a ninguém posso dizê-lo?
E olho, de fora do universo,
como se torna o fogo em gelo?
Sigo correndo sobre o abismo
pisando um fio de cabelo,
e o quanto vivo não entendo
se sonho é, se pesadelo.
Eu, que entreguei o meu destino
à proteção do Sete-Estrelo,
e cavalguei meu próprio corpo
como alazão montado em pelo?
E que no fim, mudo, submerso,
quebrei o vidro do meu verso,
e já não tenho a quem dizê-lo?


Valeriana Gibson é escritora. Vocês não conhecem.

PARA BRAULIO TAVARES

Octávio Aragão


Existem certas pessoas de quem a gente faz questão de manter distância. Também existem aquelas com quem gostamos de conviver. Porém, há uma classe específica – e rara – de indivíduos dos quais, por diversos motivos, nos esforçamos por obter a aprovação. No meu caso, essas são pessoas criativas, que demonstram um saber amplo e multidirecionado, geralmente a respeito de assuntos que são aparentemente tão díspares quanto culinária e astrofísica. Esse é o caso de Braulio Tavares. Não que ele seja um maître de algum restaurante chique ou um novo Carl Sagan, mas alguém capaz de demonstrar conhecimentos profundos a respeito de literatura de cordel, cinema, música e literatura, estendendo sua aura de influência de um ponto a outro da indústria cultural brasileira e sempre disposto a compartilhar informação, sem preconceitos ou má vontade, é digno de aplausos. E de minha amizade.

Octávio Aragão é designer gráfico, pesquisador e professor universitário. É doutor em artes visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ e leciona na Escola de Comunicação, também da UFRJ. Autor de três romances e inúmeros contos publicados no Brasil, na Inglaterra, no México, na Argentina e nos EUA, também é quadrinista e deve lançar seu segundo álbum em 2020.

BRAÚLIO TAVARES, CAMPINA GRANDE E AFETOS

Jeniffer Ferreira


1
Eu me lembro do dia em que ouvi falar sobre Bráulio Tavares pela primeira vez, em uma aula da disciplina de Literatura Paraibana, durante o curso de Letras da Universidade Federal de Campina Grande. Resolvi iniciar este pequeno depoimento inspirado na forma como o próprio Bráulio escreve, em uma série de crônicas onde recorda momentos de sua vida. A memória sempre foi um tema repleto de afetividades e medos para mim, pois ao mesmo tempo que recordo de coisas ínfimas – como uma maria chiquinha que usei durante a minha formatura na alfabetização – e que me trazem sensações de conforto e alegria, me surgem lembranças de pequenos traumas que fui acumulando ao longo dos meus vinte sete anos.

2
Eu me lembro que a memória foi o que me ligou à Bráulio Tavares. Apesar de nunca o ter conhecido pessoalmente, foram as suas recordações que me fizeram criar uma relação de proximidade tão forte com as suas obras, e em especial com as suas crônicas. Sempre tive uma relação de amor e ódio com minha cidade natal (Campina Grande), pois quando se é um jovem apaixonado por arte e cultura você anseia morar em um local que te permita vivenciar minimamente este universo. E Campina há muito deixou de ser um local onde se possa ter acesso digno a qualquer manifestação artística. Ao mesmo tempo, vejo na minha cidade um espaço acolhedor e sempre capaz de se reinventar, apesar dos pesares, e guardo inúmeras recordações de lugares onde vivenciei momentos marcantes de minha vida.

3
O primeiro contato que tive com a escrita de Bráulio Tavares, foi lendo a crônica A Flor do coco, escrita por ele em 2005, em sua coluna diária no Jornal da Paraíba e lembro de ter ficado encantada com tamanha sensibilidade ao recordar um ato corriqueiro feito por sua mãe ao abrir o coco e oferecer aos filhos a primeira raspinha suculenta da polpa do fruto. Não comecei lendo A Máquina Voadora ou A Espinha Dorsal da Memória, ou sequer tendo contato com algum livro físico. Sentei na frente do computador, abri o seu Blog “Mundo Fantasmo” e lá estavam centenas de escritos autobiográficos que foram devorados até que minha miopia não suportasse mais a luz da tela do computador.

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Eu me lembro que ainda na graduação a professora Rosângela Melo, ao saber do meu interesse em pesquisar obras de autores paraibanos para o meu TCC, me sugeriu analisar as crônicas de Bráulio Tavares que falavam – ou traziam como tema – a cidade de Campina Grande, e assim o fiz. Foram vários meses debruçada sobre esses escritos e tive a sensação de adentrar, através das memórias de Bráulio Tavares, em uma Campina Grande que eu não conhecia. Uma Campina com cineclubes, Festivais de Viola, Cinemas e respirando Arte. Cada ponto de referência da cidade que ainda existe ou que foi engolido pelo passar do tempo, me fazia refletir o quão poderosa e intensa é a nossa memória. E a cada leitura tinha a estranha sensação de que sabia mais das recordações de infância e juventude de Bráulio Tavares, do que das minhas próprias. Uma identificação que só a literatura é capaz de proporcionar.

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Bráulio Tavares é sem dúvidas um dos maiores artistas brasileiros. Passeia com facilidade e maestria pelos mais variados campos artísticos e é motivo de orgulho e admiração para a Rainha da Borborema. Sua paixão pelo Treze Futebol Clube, as lembranças do Estadual da Prata, do Cine São José, do Calçadão da Cardoso Vieira e tantos outros lugares icônicos de Campina Grande que pude ler através de suas crônicas, me fazem refletir sobre o quanto a Paraíba ainda precisa valorizar e divulgar os escritores paraibanos. São 70 anos produzindo arte, valorizando a cultura popular e orgulhando Campina! Viva a Arte! Viva a Bráulio!


Jeniffer Ferreira nasceu em Campina Grande, na Paraíba. É mestranda no Curso de Formação de Professores da Universidade Estadual da Paraíba e estudiosa da obra de Braulio Tavares.

CUSTO ZERO

Jessé Andarilho


Conheci o Bráulio Tavares em um dos encontros da FLUP (Festa Literária das Periferias). Na época eu era um aspirante a autor e ele disse uma parada que ficou marcada em minha memória.

Eu era apenas um sonhador e queria muito viver dos livros, mas sabia que para viver dos livros eu teria que viver para os livros. E conhecer aquele cara tão simples e humano, me fez acreditar que era possível.

“Literatura é uma superprodução a custo zero”

Ele falou isso e disse que a gente podia derrubar um helicóptero com uma caneta Bic. Também falou sobre a possibilidade de escrever na rua utilizando tijolos quebrados, ou sobre escrever na areia da praia com uma vareta.

Para muitas pessoas aquela fala nem teria tanta importância ou sentido, mas eu era o cara que estava escrevendo um romance no bloco de notas do meu celular Black Berry.
Depois de quase cinco anos tive o privilégio de estar numa mesma mesa de debates com o Bráulio, Conceição Evaristo, Walcyr Carrasco e outros grandes nomes da nossa literatura. E fui audacioso em revelar a importância daquelas palavras que me ajudaram a continuar caminhando, passo-a-passo, palavra-por-palavra, até poder estar presente naquele evento como um autor que hoje em dia vive das histórias criadas a custo zero.

Obrigado, Bráulio Tavares.


Jessé Andarilho é carioca. Escreveu seu primeiro livro, Fiel (Objetiva, 2014), no bloco de notas de seu celular. É autor também de Efeito variável (Alfaguara, 2017) e mantêm uma biblioteca popular na favela de Antares, onde cresceu.

O POLÍMATA

Fábio Fernades


A primeira vez que vi Braulio Tavares eu nem sabia quem era o cabra. Foi no filme Parahyba Mulher Macho, de Tizuka Yamazaki, em 1983. A cena de Tânia Alves num desafio com o repentista cego foi para mim a melhor coisa do filme. Mal sabia eu que o sujeito era também escritor de ficção científica, e dos bons (eu acho o BT o melhor escritor vivo desse gênero no Brasil, pra ser brutalmente honesto).

Quatro anos depois, por intermédio de uma amiga, entrei em contato com Jorge Luiz Calife (colega jornalista e autor da primeira trilogia de ficção científica brasileira, Padrões de Contato) e o Calife me deu o telefone do Braulio – que eu já conhecia de nome, mas não pelo filme da Tizuka (eu só me dei conta de que o ceguinho era ele há poucos anos), e sim pelo livro O Que é Ficção Científica, da Coleção Primeiros Passos. Pra vocês verem a onipresença do sujeito.

O Bráulio é um dos sujeitos que eu mais admiro. Não lembro se eu já tinha ouvido falar de Samuel Delany antes, mas sei com certeza que foi ele quem me apresentou à obra-prima desse escritor norte-americano, Dhalgren – que nem eu nem ele, até onde sei, terminamos de ler, mas isso acontece. O importante é que o Braulio já era referência para mim pelas indicações literárias.

E quando eu li A Espinha Dorsal da Memória, foi um encantamento, porque eu percebi quantas possibilidades havia para um brasileiro escrever uma ficção científica que, bebendo nas fontes dos autores clássicos (como Philip K. Dick e o já citado Delany, entre muitos outros), ainda assim conseguiu produzir algo de incrivelmente original.

Até hoje fico admirado com o tanto que Braulio sabe, e leio vorazmente sua coluna quase diária no blogue Mundo Fantasmo, onde ele destila toda a sua verve de polímata, capaz de condensar várias enciclopédias, do Thesouro da Juventude à Encyclopedia of Science Fiction do John Clute e Peter Nicholls, passando pela Barsa e pela Britannica.

Também fiquei muito feliz por ter podido contribuir para um textinho na fortuna crítica do clássico A Espinha Dorsal da Memória, que finalmente vai ser relançado com a qualidade que sempre mereceu.

Ao Braulio, ídolo e amigo, meu abraço forte e parabéns pelos setenta anos bem vividos – e que venham mais setenta, que escritor de ficção científica é longevo por natureza!

Fábio Fernandes nasceu no Rio de Janeiro em 1966, mas vive em São Paulo, onde trabalha como professor universitário e tradutor. Autor entre tantos de Back in the URSS (Patuá, 2019), Interface com o vampiro e outras histórias (Writers, 2000) e Os Dias da Peste (Tarja Editorial, 2009).


Fábio Fernandes nasceu no Rio de Janeiro em 1966, mas vive em São Paulo, onde trabalha como professor universitário e tradutor. Autor entre tantos de Back in the URSS (Patuá, 2019), Interface com o vampiro e outras histórias (Writers, 2000) e Os Dias da Peste (Tarja Editorial, 2009).

DANE-SE A LINHA TEMPORAL!

Toinho Castro

— Trupizupe! — Ouvi chamarem no meio da confusão! Olhei e era o Braulio, saltando pra fora do portal interdimensional que aparecera ali há pouco. Sabe como são essas coisas de portal interdimensional, né?! Você tá sossegado, bebendo sua cerveja num boteco em Campina e de repente um rasgo no tecido do tempo-espaço cospe do seu lado uma pessoa com cara de quem foi pega desprevenida, não porque tenha sido, afinal ninguém entra num portal sem querer. É porque essa é a cara padrão de todo mundo que se vê desmaterializado para ter os átomos rearrumados num outro lugar. Coincidência eu tá bebendo em Campina e o Braulio aparecer justamente na frente do boteco em que ocupo mesa como última trincheira civilizatória?! Na verdade não… Tá dando essa zica nos portais. Muita gente vindo bater aqui em Campina sem querer, porque deu esse revertério em certas vias de transição ou acesso ou outra coisa que eu não sei o que é. Posto que o problema é esse… você entra no portal pra… sei lá, visitar a mãe no Recife e vem bater em Campina Grande. Eu ter caído na frente de um bar e o Braulio, em seguida, também, isso sim é coincidência. Bom pra ele, que quando chegou eu já tava ajustado ao ambiente e com uma cerveja gelada na mesa. Estupidamente gelada, diga-se de passagem, pois não estamos todos de passagem?

Pedi mais um copo assim que ele me viu e cambaleou esbaforido até a mesa. Leva uns minutos até que a pessoa se recupere de uma viagem interdimensional. — Essa bar fecha que horas, moço?! — Pergunto, e abriu um sorriso com a resposta. 

— Tô fechando não! Com essa bronca dos portais tá chegando gente por aqui a toda hora! Essa primeira é por conta da casa, que esse poeta conheço bem.

Nada como estar à mesa com um filho ilustre de Campina Grande. Brindamos céleres ao defeito nos portais que nos arremessou ali na beira daquele bar que nunca fecha, como se não tivéssemos compromissos a cumprir. Pelo menos essa ocorrência era uma boa desculpa para adiar as pendências da rotina. — Aderaldo bem que podia entrar num portal defeituoso, né?! — Liguei para o impiedoso versejador mas ele não atendeu. Vai que entrou num portal com outro defeito! É o que não falta por aí… usar portais interdimensionais é a nova aventura do dia a dia. Ficamos bebendo e conversando então sobre as possibilidades do aleatório, calculando as chances de Aderaldo ciscar pra fora de um súbito portal, quem sabe já dentro do bar, para pedir sua indefectível “água com gás e limão, jovem”.

Mas sabemos, eu e Braulio, que Aderaldo nunca é pego nos redemoinhos do acaso. Ele tem esse grande plano arquitetado, do qual nem desconfiamos o teor. Provoquei Braulio, perguntando-lhe se quando era rapazote, por essas esquinas de Campina, lendo as primeiras páginas de ficção científica, imaginara que alcançaria um mundo com portais dimensionais.

Imaginei muita besteiras
Imaginei carros voando
Naves cruzando fronteiras
Alienígenas dizendo asneiras
Seres-bolhas flutuando
Realidades transversais
Em dimensões paralelas
Prodigiosos ritos e sinais
Mas nunca, jamais
Esses portais de meia-tigela!

Portais de meia-tigela é pegar pesado, afinal devíamos a eles, no mínimo, estar bebendo em Campina Grande, quando certamente estaríamos cumprindo tarefas de meio de semana na frente do computador. Pra mim, que mal conhecia Campina, estar ali era um espetáculo. Estivera por lá uma única vez e por pouco tempo, o suficiente para dali visitar Alagoa Grande e prestar honras ao nosso querido Jackson, cruzando aquele outro portal, esse real e pandeirístico, que marca a entrada daquela vila. Conversamos então sobre Jackson e sobre o velho Lua, sobre os caminhos do sertão e da asa branca voando de volta, sobre o raio laser e o gás chamado hidrogênio, que incendiou o  dirigível Hindenburg. Daí pro campo do Jiquiá foi um salto, e chegando a conversa ao Recife, falamos das pontes e dos malassombros e da Cruz do Patrão, de Calos Pena Filho e do Capibaribe, moroso, arrastando com ele manguezais, homens-caranguejos e antenas, sob os flamboyants a sangrar.

De repente, lá de dentro do bar, para muito além do balcão, escutamos uma voz familiar, fazendo as vezes de narrador de jogo de futebol, desse de rádio de pilha, fanhoso e como se narrasse o desembarque da Normandia, emulando a final do Campeonato Paraibano de 1966, quando o Treze sagrou-se campeão invicto, rendendo o Campinense no 1 a 0! Era Aderaldo que vinha lá de dentro do Bar, animado por nos encontrar.

— Uma água mineral com gás, jovem mancebo! — Fez uma pausa enigmática e completou: 
— Brauilo, Tunico… o acaso não existe.  Estamos aqui pra comemorar teus 70 anos, Braulio!
— Oxe! Ainda não!
— Ainda sim! Veja bem, jovem. Essa passagem não é só interdimensional, como também transtemporal! Assim sendo, saímos de onde saímos num dia e demos aqui em outro. Tudo isso dentro de um plano edificante que nos escapa à compreensão. Bora brindar?
— Lascou! — Murmurou um conformado Braulio Tavares, que bem sabe que não há argumento com Aderaldo, com as malemolências dimensionais e temporais. — Desce outra!

Pra conferir o feito, Braulio levantou-se e foi até à folhinha pendurada na parede para conferir a data. Voltou pálido em meio a confusão do boteco, enquanto o portal sacudia mais um incauto nas ruas de Campina.

— O que foi, cabra?
— Lá na folhinha… Setembro tá escrito assim: Septenbrum. — Fez um silêncio. — Alguém pisou numa borboleta!

Nisso o portal desabrochou mais um desorientado na calçada do bar gritando: — Dane-se a linha temporal!

Ouviu-se um som de trovão.

O ENCONTRO DE JACKSON DO PANDEIRO E BOB DYLAN NA FEIRA DE SÃO CRISTOVÃO!

Igor Gregório


Essa história chegou até mim através do álbum “Voz, Violão e Verso” do meu conterrâneo Bráulio Tavares, que é escritor, compositor, letrista, poeta, cantor, dramaturgo, tradutor e pesquisador de literatura fantástica paraibano.

No álbum Bráulio, na narração que antecede a música “Mr. Tambourine Man”, conta como se deu o encontro do Rei do Ritmo com o Rei do Folk na feira de São Cristóvão no Rio de Janeiro.

Verdadeira ou não, eu achei uma história fascinante! Pois o encontro de dois universos tão diferentes ligados pela música é algo fantástico, que mesmo que não tenha acontecido, a literatura, a música e a poesia tornam verdadeiro.

Dessa forma, nesse folheto, procuro não somente homenagear os Reis, mas também Bráulio e os feirantes de todo Brasil, pois todos são fontes de histórias maravilhosas.


Acordo pela manhã
E o café já faz morada
Minha velha a conquistar
Esse velho camarada
Recolho minhas coisinhas
E vou cedo pra jornada

Desço o morro na trotada
Da Mangueira tão aguerrida
Hoje eu moro na favela
Mas do Norte fiz partida
Eu sou mais um exilado
Nesta terra prometida

Já na feira tão querida
Minha barraca eu preparo.
Da bondosa São Cristóvão
É que provenho o meu amparo!
Dela vem tudo que tenho
É nela, que a vida eu encaro!

Por aqui eu sigo meu faro
Vejo o funcionamento.
Ligado, sou um vendedor
Rápido que nem o vento!
Em minha nobre barraca
É constante o movimento.

E tenho aqui condimento
Tenho roupa pra fogão
Tenho tecido de chita
Tenho cachaça e limão
Tenho beiju e rapadura
Tenho tudo do Sertão

Nordestino aqui é grão
Espalhado em todo canto
A procura de um emprego
E dois tantos de acalanto!
Por um trabalho e um patrão
Já vi pai sofrendo em pranto!

Pois não existe nenhum santo
Que acalente um coração
De quem distante de casa,
Em cima de um caminhão,
Chora pela despedida
Do tão querido Sertão!

Na feira de São Cristóvão
Sim, vejo a tristeza vir!
Mas é claro, eu também vejo
Muita gente a sorrir!
Em música sanfonada
Vejo a bonança luzir!

Então sorrindo vou abrir
A história que vou narrar!
Numa noite carioca
Banhada pelo luar
Como um grande nordestino
Pôs um gringo pra sambar.

Uma trombada de encantar
Desses dois desconhecidos
Um cabra da Paraíba
E um dos Estados Unidos
Um cabra só no pandeiro
E o outro só nos “Cigarritos”

Espiem só meus queridos!
O tocador do pandeiro
Era mais um Zé na feira
Mas rodou o país inteiro
Sendo o grande Rei do Ritmo
Sendo Jackson do pandeiro

Mas antes desse floreio
Ele vinha aqui pra feira
Tocando coco e embolada
Fazendo samba e gafieira.
Tomando cana, fazia
Festa pela noite inteira

E foi numa sexta feira
Que ele chegou na zoada!
Me pediu uma garrafa
Já virando uma lapada
Depois chispou para mesa
Tocando sua embolada

Jackson e seus camaradas
Começaram a beber
E no seu pandeiro, o samba
Começou logo a ferver
E na roda musical
Eu também fui tremer

Mas antes de acontecer
Um cabra de lá gritou:
– Ei companheiro, vem cá!
E de mim, se aproximou!
Me levando para um canto
A ladainha me chorou:

– Eu não sei para onde vou
Com esse gringo maldito!
Eu olhei com o canto do olho
E lá estava o bendito.
Era o tal de Bob Dylan
Tragando seu “Cigarrito”.

Como eu conheço o “bonito”?
Eu conto no finalzinho.
Voltando pra o fumaceiro
O cabra disse baixinho:
– Esse gringo quer mais fumo
Ele que mais cigarrinho!

Eu respondi rapidinho:
– Aqui eu só tenho cachaça!
Depois de pensar um pouco
Ele falou na fumaça:
– Traga aí que eu vou beber
Pra aguentar essa bagaça!

Depois daí vi na praça
O gringo gesticulando
E pedindo ao seu amigo
Pra levantar e ir andando
Chamar o nobre Jackson
Que estava pandeirando!

O Cabra foi praguejando
E todo descompensado,
Mas obedeceu ao gringo
Do dinheiro esverdeado
Voltou trazendo Jackson
Pela grana interessado.

Jackson, matuto ligado
Até maxixe tocou.
O gringo ficou abismado
Bateu palmas, se alegrou!
O pandeiro foi moendo
E o moído começou!

O branquelo se jogou
Adentrando na canção
Dando batidos de palma
Dando pisadas no chão
Jackson lascava o pandeiro
E exibia a vocação

A feira em ebulição
Fez a roda pra dançar
Era menino, era homem
Era mulher a sambar
Todo mundo festejando
Sem ver a noite passar

E leve como o planar
Jackson diz: – Rapaziada,
Já está na minha hora.
Vou descer para quebrada
Para os braços da Morena
Senão, entro numa enrascada!

Todo mundo fez zoada
E o gringo foi interferir:
– Hey! Mr. Tambourine man
Play another song for me!
Ninguém entendeu foi nada
O povo começou a rir!

– Play another song for me!
Repetiu ele sorrindo
E Jackson humildemente
Já foi logo se bulindo
Mas avisando pra todos:
– Gente, depois dessa eu findo!

E com o gringo sorrindo
Jackson fez o chão tremer
O povo a se abufelar
O gringo a cana beber
E a minha nobre barraca
Se acabando de vender

E quando acabou o ferver
Palmas o gringo bateu
O povo quase que endoida
Da alegria que viveu
A feira se iluminara
Com a luz que o samba deu!

Depois que tudo ferveu
E eu me encostei bem faceiro
O pobre amigo do gringo
Caminhando pro banheiro
Me disse que o gringo tinha
A fama do mundo inteiro

Eu disse: – Mas companheiro
Aqui ninguém o conhece!
– Bob Dylan o nome dele
E ele quase me endoidece!
Amanhã ele vai emboraw
Se Deus ouvir minha prece.

Mas o samba prevalece
Sobre a reza equivocada!
Bob e Jackson vão se saindo
Pelo rumo da alvorada
E o Cabra lá no banheiro
Perde essa dupla danada!

E lhes digo, camaradas:
Música não dá calote!
Une nordestino e gringo
Une nota, verso e o mote!
E findando o moído, une
O Rei do Ritmo e o do Folk!

FIM

Igor Gregório é natural da Cidade da Parahyba, Paraíba. Filho de Vilma e esposo de Priscilla. Exerce a profissão de Eletrotécnico em paralelo a escrita. É amante da boa literatura, da poesia e do cordel brasileiro.