Toinho Castro
— Trupizupe! — Ouvi chamarem no meio da confusão! Olhei e era o Braulio, saltando pra fora do portal interdimensional que aparecera ali há pouco. Sabe como são essas coisas de portal interdimensional, né?! Você tá sossegado, bebendo sua cerveja num boteco em Campina e de repente um rasgo no tecido do tempo-espaço cospe do seu lado uma pessoa com cara de quem foi pega desprevenida, não porque tenha sido, afinal ninguém entra num portal sem querer. É porque essa é a cara padrão de todo mundo que se vê desmaterializado para ter os átomos rearrumados num outro lugar. Coincidência eu tá bebendo em Campina e o Braulio aparecer justamente na frente do boteco em que ocupo mesa como última trincheira civilizatória?! Na verdade não… Tá dando essa zica nos portais. Muita gente vindo bater aqui em Campina sem querer, porque deu esse revertério em certas vias de transição ou acesso ou outra coisa que eu não sei o que é. Posto que o problema é esse… você entra no portal pra… sei lá, visitar a mãe no Recife e vem bater em Campina Grande. Eu ter caído na frente de um bar e o Braulio, em seguida, também, isso sim é coincidência. Bom pra ele, que quando chegou eu já tava ajustado ao ambiente e com uma cerveja gelada na mesa. Estupidamente gelada, diga-se de passagem, pois não estamos todos de passagem?
Pedi mais um copo assim que ele me viu e cambaleou esbaforido até a mesa. Leva uns minutos até que a pessoa se recupere de uma viagem interdimensional. — Essa bar fecha que horas, moço?! — Pergunto, e abriu um sorriso com a resposta.
— Tô fechando não! Com essa bronca dos portais tá chegando gente por aqui a toda hora! Essa primeira é por conta da casa, que esse poeta conheço bem.
Nada como estar à mesa com um filho ilustre de Campina Grande. Brindamos céleres ao defeito nos portais que nos arremessou ali na beira daquele bar que nunca fecha, como se não tivéssemos compromissos a cumprir. Pelo menos essa ocorrência era uma boa desculpa para adiar as pendências da rotina. — Aderaldo bem que podia entrar num portal defeituoso, né?! — Liguei para o impiedoso versejador mas ele não atendeu. Vai que entrou num portal com outro defeito! É o que não falta por aí… usar portais interdimensionais é a nova aventura do dia a dia. Ficamos bebendo e conversando então sobre as possibilidades do aleatório, calculando as chances de Aderaldo ciscar pra fora de um súbito portal, quem sabe já dentro do bar, para pedir sua indefectível “água com gás e limão, jovem”.
Mas sabemos, eu e Braulio, que Aderaldo nunca é pego nos redemoinhos do acaso. Ele tem esse grande plano arquitetado, do qual nem desconfiamos o teor. Provoquei Braulio, perguntando-lhe se quando era rapazote, por essas esquinas de Campina, lendo as primeiras páginas de ficção científica, imaginara que alcançaria um mundo com portais dimensionais.
Imaginei muita besteiras
Imaginei carros voando
Naves cruzando fronteiras
Alienígenas dizendo asneiras
Seres-bolhas flutuando
Realidades transversais
Em dimensões paralelas
Prodigiosos ritos e sinais
Mas nunca, jamais
Esses portais de meia-tigela!
Portais de meia-tigela é pegar pesado, afinal devíamos a eles, no mínimo, estar bebendo em Campina Grande, quando certamente estaríamos cumprindo tarefas de meio de semana na frente do computador. Pra mim, que mal conhecia Campina, estar ali era um espetáculo. Estivera por lá uma única vez e por pouco tempo, o suficiente para dali visitar Alagoa Grande e prestar honras ao nosso querido Jackson, cruzando aquele outro portal, esse real e pandeirístico, que marca a entrada daquela vila. Conversamos então sobre Jackson e sobre o velho Lua, sobre os caminhos do sertão e da asa branca voando de volta, sobre o raio laser e o gás chamado hidrogênio, que incendiou o dirigível Hindenburg. Daí pro campo do Jiquiá foi um salto, e chegando a conversa ao Recife, falamos das pontes e dos malassombros e da Cruz do Patrão, de Calos Pena Filho e do Capibaribe, moroso, arrastando com ele manguezais, homens-caranguejos e antenas, sob os flamboyants a sangrar.
De repente, lá de dentro do bar, para muito além do balcão, escutamos uma voz familiar, fazendo as vezes de narrador de jogo de futebol, desse de rádio de pilha, fanhoso e como se narrasse o desembarque da Normandia, emulando a final do Campeonato Paraibano de 1966, quando o Treze sagrou-se campeão invicto, rendendo o Campinense no 1 a 0! Era Aderaldo que vinha lá de dentro do Bar, animado por nos encontrar.
— Uma água mineral com gás, jovem mancebo! — Fez uma pausa enigmática e completou:
— Brauilo, Tunico… o acaso não existe. Estamos aqui pra comemorar teus 70 anos, Braulio!
— Oxe! Ainda não!
— Ainda sim! Veja bem, jovem. Essa passagem não é só interdimensional, como também transtemporal! Assim sendo, saímos de onde saímos num dia e demos aqui em outro. Tudo isso dentro de um plano edificante que nos escapa à compreensão. Bora brindar?
— Lascou! — Murmurou um conformado Braulio Tavares, que bem sabe que não há argumento com Aderaldo, com as malemolências dimensionais e temporais. — Desce outra!
Pra conferir o feito, Braulio levantou-se e foi até à folhinha pendurada na parede para conferir a data. Voltou pálido em meio a confusão do boteco, enquanto o portal sacudia mais um incauto nas ruas de Campina.
— O que foi, cabra?
— Lá na folhinha… Setembro tá escrito assim: Septenbrum. — Fez um silêncio. — Alguém pisou numa borboleta!
Nisso o portal desabrochou mais um desorientado na calçada do bar gritando: — Dane-se a linha temporal!
Ouviu-se um som de trovão.